(veja o post ao qual esse extra complementa, 'Qual é a origem de "Casa de ferreiro, espeto de pau"?)


Você deve estar aqui porque decidiu ler mais sobre a história da imagem do Jornal do Commercio Nº 250 (Rio de Janeiro, 7 de novembro de 1834). Ou seja, você está com muito tempo livre nas mãos. Fico feliz que você tenha decidido gastar esse tempo livre lendo as bobeiras que eu escrevo! Muito obrigado :)

Bom, sobre o assunto em mãos: acontece que a reprodução de páginas escaneadas do Jornal do Commercio não é de graça; a licença para uso de uma página, quando eu requisitei, foi de R$20. Para meu azar, o ditado não estava na página de capa – e eu realmente queria tanto o cabeçalho do jornal, quanto o ditado –, então eu tecnicamente precisava da licença de duas páginas!

Tabela contida na autorização que eu recebi, informando o custo de
 R$40 pela licença das duas páginas do jornal.
Levo processo se eu não creditar as imagens direitinho

Agora que eu já gastei R$40 em licenças, aqui vão algumas informações extras sobre aquela edição do jornal – porém, somente informações contidas nas duas páginas as quais eu tenho licença para uso.


Lua & Temperatura

Trecho do 'Jornal do Commercio': informações sobre fases da lua,
 temperatura do ar e maré.
Trecho sobre fases da lua, temperatura do ar e maré.

Crédito: Arquivo JC/D.A Press.

Primeiro de tudo, temos uma lista de fases da lua para o mês, com precisão do minuto. Não tenho certeza da relevância dessa informação, em especial para merecer estar na capa do jornal. Mas, na ausência de qualquer outra utilidade, no mínimo serve como registro histórico – de acordo com o Jornal, a lua estava nova no dia 7, e virou crescente no dia seguinte.

Logo abaixo, temos temperamento do ar. Curiosamente, isso não é uma previsão do tempo: esse jornal foi publicado no dia 7 de novembro, e a reportagem é sobre temperaturas do dia 6! Ainda mais curioso é o fato de que as temperaturas estão em Fahrenheit, e não em Celcius.

Temperamento do Ar, do dia 6.

8 horas da manhã
76.° Fahrenheit.

Meio dia
78.°

4 horas da tarde
80 °
Jornal do Commercio Nº 250 (Rio de Janeiro, 7 de novembro de 1834).

Para aqueles, como eu, que não entendem Farehnheit, aqui estão as equivalências em Celcius:

8 horas da manhã
24.4 °C

Meio dia
25.6 °C

4 horas da tarde
26.7 °C

De acordo com gráficos do Instituto Nacional de Meterologia (INMET), a temperatura média do mês de novembro, no período de 1981–2010 foi de 26 °C. No período de 1961–1980, foi de 24.2 °C. E, finalmente, no período de 1931–1960, foi de 23.1 °C.

Gráfico do Instituto Nacional de Meterologia comparando temperaturas
 em diferentes décadas.
Gráfico comparativo de Temperatura Média (em °C) da estação da cidade do Rio de Janeiro – INMET.

É possível perceber uma tendência de aumento de temperatura nesse intervalo de 80 anos (provavelmente causada pelo aquecimento global). Extrapolando essa informação para a década de 1830, podemos então concluir que, com sua temperatura mais alta reportada como 26.6 °C, o dia 6 de novembro de 1834 foi especialmente quente!


Preços & Réis

Se você já estudou alguma coisa sobre a história do sistema monetário brasileiro, sabe que é uma bagunça: 12 reformas, com 9 padrões monetários diferentes.

Em outubro de 1833, foi implementada uma lei que, entre outras coisas, fixa o novo padrão monetario:

Art. 31. As notas do Banco serão divididas na razão de um, dous, cinco, sendo a minima de mil réis. Ellas serão do melhor padrão, e de um papel competente, e só differirão entre si pelas assignaturas do Presidente, e Directores das Caixas que as emittirem.

Lei N. 59 de 8 de outubro de 1833

Essa mudança reformava a moeda não como réis, mas como mil réis. E em nosso Jornal, publicado um ano depois da reforma, existem menções a preços da época, já em "mil-réis":

Trecho do 'Jornal do Commercio': preço da assinatura do jornal.
Trecho que menciona o preço do jornal. Crédito: Arquivo JC/D.A Press.

O JORNAL DO COMMERCIO se publica diariamente; o preço da Assignatura he de 6$000 Rs. por semestre, pagos adiantados. Folha avulsa, 120 Rs.

O custo da assinatura, por semestre, era 6 mil-réis, ou seja, 1 mil-réis por mês. Podemos calcular o custo disso em reais modernos facilmente se desconsiderarmos inflação. Aplicando as conversões diretas de cada reforma, chegamos às seguintes equivalências:

R$1 = 2.750.000.000.000:000$000 Rs
1 Rs = R$ 0,00 000 000 000 000 000 000 036 363…

Mas isso não é uma informação muito útil. Afinal, jornais hoje em dia não custam quinquilhonésimos de centavo! Portanto, mergulhei no desafio que era aprender economia.

Não sou economista, nem finjo ser. Portanto tudo a partir daqui é de precisão duvidável, e pode ou não estar correto!

Para calcular inflação, pessoas que realmente entendem de economia usam o chamado IPC (Índice de Preços ao Consumidor). Pelo meu entendimento, uma entidade escolhe certos itens – como arroz, feijão, etc; em seguida, o custo desses itens é calculado, e comparado com o preço dos mesmos itens no ano anterior. A diferença de preço seria a "inflação". No caso do Brasil, algumas entidades calculam IPCs – como o IBGE e a FGV.

Acontece que esse método não é perfeito, em especial quando se está tentando comparar preços em diferentes moedas: como se calcula a diferença de preço entre um saco de arroz de Cr$10 e um de R$10?

Por sorte, existem economistas no mundo pra lidar com esse problema por mim. Encontrei um livro, A Inflação Brasileira: 1820-1958 (Rio de Janeiro, 1960) de Oliver Ónody. Por incrível coincidência e conveniência, Ónody disponibilizou uma tabela enorme de IPCs calculados (p.25) para os anos entre 1829 e 1958: um anjo.

Parte da página 25 do livro: 'Brasil - Índice do Custo de Vida'.

Porém, não estamos – pelo menos, eu não estou – em 1958. Então precisamos fechar o intervalo 1958–2020. Não foi a coisa mais simples do mundo porque, como eu mencionei, normalmente só se calcula valores em moeda igual; ou seja, a partir do plano real, nos anos '90. Mas o Banco Central do Brasil disponibiliza a Calculadora do cidadão, que permite a conversão de valores de 1943 até hoje (utilizando IPC-SP, da FIPE).

Portanto, usando 100% do meu poder cerebral, grudei os valores com chiclete para chegar na fórmula provavelmente muito errada para estimação de quanto um preço, em réis de 1834, seria equivalente em reais de 2019.

Pelos meus cálculos, a diferença é um fator de 22,9510576923077. Ou seja:

R$1 ≅ 23 Rs
1 Rs ≅ R$ 0,04

Com essa informação, podemos calcular o preço equivalente da assinatura do Jornal do Commercio:

Preço semestral

6$000 Rs ≅ R$261,43

(daí tiramos que)
Preço mensal

1$000 Rs ≅ R$43,57

Folha avulsa

120 Rs ≅ R$5.23

Analisando o preço, vemos que a assinatura semestral valia super a pena: dividindo 6$000 Rs por 30 dias do mês, por 6 meses, ficamos com aproximadamente 33 Rs por jornal individual (aprox. R$1.44); enquanto que o preço pela folha avulsa era quase 4 vezes isso, a 120 Rs.

Com um método para converter réis em reais (e vice-versa), podemos montar uma tabela para comparar o preço do Jornal do Commercio com preços de jornais atuais:

Assinatura p/ mês (R$) Assinatura p/ mês (Rs) Cada avulso (R$) Cada avulso (Rs) Cada c/ assinatura (R$) Cada c/ assinatura (Rs)
Jornal do Commercio
(1834)
R$43,57 1$000 Rs R$5,23 120 Rs R$1,45 33 Rs
Jornal do Commercio1
(2012)
R$37,00 849 Rs R$2,00 46 Rs R$1,23 28 Rs
Folha de S.Paulo2
(2020)
R$114,17 2$620 Rs R$5,00 115 Rs R$3,81 87 Rs
Correio Braziliense3
(2020)
R$65,80 1$510 Rs R$2,50 57 Rs R$2,19 50 Rs
O Dia4
(2020)
R$52,40 1$203 Rs R$1,50 34 Rs R$1,75 40 Rs

Nota: Tentei utilizar valores o mais próximo da situação de 1834 – i.e., assinatura de jornal impresso de segunda a domingo, e preço semestral. Porém, nem sempre foi fácil encontrar valores para somente a assinatura de jornal impresso; a maioria dos jornais só vende impresso como pacote junto com acesso digital.

Aqui está uma pequena ferramenta interativa para converter reais (2019) em réis (1834), e vice-versa:

=

Pra finalizar, vou novamente afirmar que a minha conversão é uma estimativa muito grosseira, e que podem estar muito incorretos. Existem diversos IPCs, que medem vários grupos de produtos diferentes. Eu misturei dois deles, e a tabela do livro já estava misturando vários diferentes também. Portanto, é muito provável que a minha estimativa não esteja precisa, mas eu fiz tudo só por diversão mesmo.


Referências:

  1. Jornal do Commercio (2012) – assinatura (média mensal da assinatura semestral por R$222,00); avulso.
  2. Folha de S.Paulo – assinatura (média mensal da assinatura semestral, à vista, por R$685,00); avulso.
  3. Correio Braziliense – assinatura (média mensal da assinatura anual por R$789,60 [R$99,90 + 11×R$62,70]); avulso.
  4. O Dia – assinatura, avulso.

Poucas novidades

Trecho do 'Jornal do Commercio': poucas novidades do Rio da Prata.
Trecho sobre o paquete inglês com poucas novidades.

Crédito: Arquivo JC/D.A Press.

Pelo Paquete Inglez Cockatrice tivemos gazetas do Rio da Prata até 25 do mez passado; porém poucas novidades dellas colhemos.

Uma cocatrice, de onde o nome da embaração foi tirado, é uma criatura mitológica, com corpo de um réptil alado e cabeça de galo.

Brasão com desenho de uma cocatrice.
Uma cocatrice fofinha que eu decidi chamar de Francesca.

O paquete – termo para uma embarcação de tamanho médio, muitas vezes utilizada para entregar cartas – HMS Cockatrice foi construído 2 anos antes da publicação do jornal, em 1832, e aparentemente trazia gazetas – jornais ou revistas – do Rio da Prata.

Não sei se é literalmente o Rio da Prata dado que, não muito tempo antes da publicação do jornal, o território da atual Argentina tinha o nome de Províncias Unidas do Rio da Prata (1816–1831). Porém, considerando que é um barquinho, é bem possível que eles estivessem se referindo simplesmente a onde ele navegou.

Mapa do Rio da Prata.
O Rio da Prata (Rio de la Plata) em vermelho; cidade do Rio de Janeiro no topo. (mapa atual)
Mapa do Rio da Prata.
Her Majesty's schooner Cockatrice On the English Bank Rio de la Plata, May 26th 1840 [Escuna Cockatrice de Sua Majestade no Banco Inglês Rio de la Plata, 26 de maio de 1840] – Webb, W H
© National Maritime Museum Collections