1. Introdução
  2. Variações
  3. Primeiro registro
    1. No Brasil
      1. Séc. XIX
      2. Séc. XVIII
        1. Contexto
        2. Tá, mas e daí
        3. O início de um sonho
        4. Deu tudo errado
    2. Em Portugal
  4. Paralelo com outras línguas
    1. Espanhol / Castelhano
    2. Chinês
    3. Inglês
  5. Resultados
    1. Brasil
    2. Portugal
    3. Espanha
  6. Minha teoria
  7. Conclusão
  8. Saiba pois o Mundo, e a posteridade

Introdução

Por nenhum motivo especial, outro dia pensei: "qual será a origem da expressão 'casa de ferreiro, espeto de pau'?"

No século XXI, não temos mais tantos ferreiros por aí. Então, acho que podemos presumir que a expressão tem origem em uma época em que ferreiros eram mais comuns, i.e. pré-Revolução Industrial – que ocorreu em meados do século XVII / início do século XVIII.

Será que o ditado vem da era medieval? Será que é ainda mais antigo?

Não encontrei uma resposta direta na internet – até havia uma pergunta de 2019 no Quora mas, como sempre, as respostas foram absolutamente inúteis. Também encontrei uma resposta satírica de 2006, no blog "A Origem dos Provérbios", que também foi menos que inútil.

Armado com a motivação gerada por essa dúvida, eu fui pesquisar.

Nota: Vale pontuar que minhas pesquisas limitam-se em grande parte ao acervo disponível online. Ou seja, livros digitalizados e com OCR decente.

OCR é a técnica que tenta extrair texto de imagens. Isso é necessário porque, para um computador, uma fotografia de um gatinho é o mesmo que uma fotografia de texto: não há informação textual. Portanto, para buscar texto em um livro escaneado, precisamos do OCR. Por sorte, o Google Books já costuma aplicar OCR aos livros, porém nem sempre é perfeito. Letras parecidas, como c e e, ou f e ſ (S longo, usado muito em textos antigos), podem ser trocadas. Portanto, às vezes convém pesquisar não por "ferreiro", mas por "serreiro"; ou por "cafa" ao invés de "casa".


Variações

Em pesquisas preliminares descobri que, além de poder começar com "Em casa..." ou imediatamente com "Casa...", existem algumas variações diretas da expressão. Na prática, nenhuma dessas foi de muito uso, mas cabe pontuar que elas existem:

  1. Casa de ferreiro, espeto de pau;
  2. Casa de ferreiro, espeto de amieiro (árvore de Portugal);
  3. Casa de ferreiro, espeto de salgueiro (outra árvore, mais famosa e mais comum no hemisfério norte).
Scan de página da revista 'Almansor: Revista de Cultura', primeira edição
de 2002 (2ª série). O texto diz: 'Em casa de ferreiro, espeto de salgueiro: uma
abordagem ao ofício de ferreiro. De Maria do Rosário Caeiro.'
"Em casa de ferreiro, espeto de salgueiro" – Almansor: Revista de Cultura (1ª edição; Montemor-o-Novo, 2002).

Em 1940, Leonardo Mota publicou um artigo na Revista da Academia Cearense de Letras, entitulado "Paremiologia" (o estudo de ditados e provérbios).

O artigo, disponível online, faz a comparação da evolução de diversos provérbios através de fontes publicadas em diferentes épocas. Em especial, Mota faz a análise do nosso ditado e traz que, em 1780 (na coleção de Francisco Rolland), o provérbio era diferente da forma atual (encontrada já em 1882, em Filosofia Popular em Provérbios). Ele dizia:

  • Em casa de ferreiro, pior apeiro.

Onde apeiro, de acordo com o dicionário Michaelis, significa conjunto dos instrumentos necessários a um ofício ou trabalho. A expressão, então, tem sentido de "em casa de ferreiro, as ferramentas são piores".

Portanto, possuímos 4 variações do ditado para procurar.


Primeiro registro

Nota: "primeiro registro"... encontrado por mim. Não posso fazer a reivindicação de que qualquer um desses é o primeiro uso registrado, mas na extensão das minhas pesquisas, foram os mais antigos que eu consegui encontrar.

No Brasil

Séc. XIX

Comecei minha pesquisa utilizando a Biblioteca Nacional Digital brasileira. É um recurso incrível que permite a busca por palavras em centenas de páginas de jornais de diversas épocas e locais.

A referência mais antiga que eu encontrei nessa ferramenta foi na edição de 7 de novembro de 1834 do Jornal do Commercio, em que uma coluna de autoria de "Carapuceiro" possui o ditado Em casa de ferreiro, espeto de pau:

Cabeçalho do 'Jornal do Commercio', edição de 7 de novembro de 1834.
Trecho do 'Jornal do Commercio' que, além de outras coisas, utiliza a
expressão 'Em casa de ferreiro, espeto de pau'.
"Em casa de ferreiro espeto de páo" – Jornal do Commercio Nº 250 (Rio de Janeiro, 7 de novembro de 1834). [sobre a licença dessa página]

Crédito: Arquivo JC/D.A Press.

Fora da Biblioteca Nacional, encontrei duas referência em "Collecção de Proverbios, Adagios, Rifãos, Anexins, Sentenças Moraes e Idiotismos da Lingoa Portugueza" (Rio de Janeiro, 1848; pp. 36, 67), por P. Perestrello da Camara. A versão listada também é Em casa de ferreiro, espeto de pau.


Séc. XVIII

Contexto

Como descrito em "A chegada dos livros no Brasil" (Porto Alegre, 2018), pós-graduação de Lilia Baranski Feres na UniRitter, a imprensa no Brasil só foi permitida a partir de 1808, com a vinda da família real à colônia.

Antes disso, livros escritos eram enviados para Portugal para serem impressos lá, e depois trazidos novamente para o Brasil. Pelo que consegui descobrir, houveram três tentativas não-oficiais de se estabelecer uma imprensa no Brasil antes da chegada da família real:

  1. A primeira, durante a ocupação holandesa no nordeste do Brasil, que aparentemente falhou sem imprimir livros;
  2. A segunda, circa 1706, em Recife, da qual parece que não sobrou nenhum rastro, com exceção da Carta Real de 8 de junho de 1706 proibindo e confiscando o material impresso;
  3. A terceira e última, em 1747, por Antonio Isidoro da Fonseca, que já era tipógrafo em Portugal anteriormente. Vendeu sua oficina lá e veio para o Brasil reabrí-la aqui. A Corte, contudo, a fechou, e Fonseca retornou a Portugal para tentar novamente sua vida por lá.

Alfredo do Vale Cabral, autor de "Annaes da Imprensa Nacional do Rio de Janeiro de 1808 a 1822" (Rio de Janeiro, 1881), lista em sua obra que Antonio Isidoro da Fonseca conseguiu publicar 3 (ou, possivelmente, 5) livros no Rio de Janeiro antes de ter sua oficina de imprensa confiscada.

Ainda segundo Cabral, no dia 13 de maio de 1808, estabeleceu-se a "Impressão Regia", a primeira imprensa oficial do Brasil. Cabral cita o Correio Braziliense (Londres, junho de 1808; pp. 393–394) – disponível online –, com comentários comemorativos sobre a nova imprensa:

Citação do Correio Braziliense, de junho de 1808.
Saiba pois o Mundo, e a posteridade, que no anno de 1808 [...] mandou o Governo Portuguez, no Brazil, buscar a Inglaterra uma Impressaõ [...] Tarde; desgraçadamente tarde : mas em fim apparecem typos no Brazil; e eu de todo o meu Coração dou os parabens aos meus compatriotas Brazilienses.Correio Braziliense (Londres, junho de 1808, p. 393).
Tá, mas e daí

Fui em toda essa tangente enorme para dizer que, se existe ocorrência do ditado na literatura brasileira até o século XVIII (i.e. pré-1800), seria muito difícil, talvez impossível, de encontrar.

  • É possível que existam obras holandesas de meados do século XVII publicadas no Brasil (e portanto tecnicamente literatura brasileira), mas que muito provavelmente já foram perdidas para sempre. E, mesmo que fossem encontradas por alguma magia, estariam em holandês, outra língua que eu não falo (ainda?);
  • As poucas obras de Recife, do início do século XVIII, foram supostamente confiscadas e destruídas, e não se têm registro delas;
  • As poucas obras de Isidoro da Fonseca são igualmente difíceis de achar, salvo a primeira – cujo nome, tão grande que não cabe em um tweet, encurto para Relaçaõ da Entrada – que, por ser a primeira, é famosa e está disponível online, mas não fala nada sobre ferreiros.

Eu adoraria estar errado. Se você, leitor, por algum milagre do destino, possuir algum conhecimento sobre obras publicadas no Brasil antes de 1808 – talvez sem imprensa, copiadas manualmente? –, em especial que façam menção a ferreiros e espetos ou apeiros, não hesite em me mandar um email (o@amendo.im).

O início de um sonho

Como eu comentei acima, obras escritas no Brasil precisavam ser enviadas para Portugal para serem publicadas. Isso torna mais complicado a tarefa de definir o país (ou colônia) de origem do autor da obra.

Porém, meu colega Antônio de Morais Silva facilitou bastante meu trabalho, escrevendo bem grande na capa: Natural do Rio de Janeiro.

Antônio de Morais publicou algumas edições de seu dicionário da língua portuguesa, mas a que nos interessa agora é a mais antiga delas, "Diccionario da Lingua Portugueza composto pelo Padre D. Rafael Bluteau, Reformado, e Accrescentado por Antonio de Moraes Silva, Natural do Rio de Janeiro" (Lisboa, 1789). Nela, podemos encontrar, como um raio de sol em tempos chuvosos, o ditado "Em casa de ferreiro pior apeiro":

Scan de parte do cabeçalho do 'Diccionario da Lingua Portugueza', de 1789.
Trecho do 'Diccionario da Lingua Portugueza' que, além de outras coisas,
cita a expressão 'Em casa de ferreiro, pior apeiro'.
"Em caſa de ferreiro peior apeiro" – Diccionario da Lingua Portugueza (Lisboa, 1789).
Deu tudo errado

Tecnicamente, o "Diccionario" não é uma publicação brasileira. Além de ter sido impresso em Lisboa, o próprio Antônio de Morais (natural do Rio de Janeiro!) não morou sua vida inteira no Brasil, nem organizou o livro aqui.

Clotilde Murakawa, na Alfa: Revista de Linguística (v.50, n.2; São Paulo, 2006), escreve que Antônio de Morais estudava Direito na Universidade de Coimbra, em Portugal, quando foi acusado de heresia em 1779 e fugiu para a Inglaterra. Voltou a Lisboa somente em 1785, e lá publicou o "Diccionario" em 1789. Em 1794, 5 anos depois da publicação do dicionário e 15 anos depois da acusação, retornou ao Brasil, já estando até casado.

Ou seja, de influência brasileira esse dicionário não tem nada – pelo menos, não sua primeira versão.

Agora, é claro que pode-se fazer o argumento que, de uma forma ou de outra, o povo brasileiro tomaria conhecimento do ditado senão em 1789 pela publicação de seu dicionário, então em 1794 quando Antônio voltou ao Brasil.

E, sem dúvida, não estou negando que o Brasil já utilizava o ditado há anos. Porém, não acredito que o "Diccionario" de Antônio seja evidência material suficiente pra corroborar essa especulação.


Em Portugal

Portugal, sendo o país colonizador, não tinha as mesmas restrições de imprensa que o Brasil tinha na época. Portanto, desconsiderando arquivos digitais de bibliotecas portuguesas (que eu achei incrivelmente difíceis de achar e utilizar), pelo Google Books a mais antiga ocorrência que eu encontrei foi de 1651, e foi a variante de Em casa de ferreiro, pior apeiro:

Scan de parte do cabeçalho do 'Adagios Portuguezes', de 1651.
Trecho do 'Adagios Portuguezes' que, além de outras coisas, utiliza a
expressão 'Em casa de ferreiro, pior apeiro'.
"Em casa do Ferreiro, pejor apeiro" – Adagios Portuguezes Reduzidos a Lugares Communs (Lisboa, 1651).

Paralelo com outras línguas

Espanhol / Castelhano

Em espanhol, existem três expressões equivalentes à expressão em português – é notável que o utensílio do ferreiro é a faca, não o espeto:

  1. En casa de herrero, cuchillo de palo (lit. "em casa de ferreiro, faca de pau");
  2. En casa de herrero, peor apéro (lit. "em casa de ferreiro, pior apeiro");
  3. En casa de herrero, cuchillo mangorrero.

Não falo espanhol, porém pelas minhas pesquisas, parece que o termo "mangorrero" já caiu em desuso. De qualquer forma, segundo o Diccionario de la lengua española da Real Academia Española, "mangorrero" significa "tosco / mal-forjado". Portanto, a tradução da última frase seria:

  • Em casa de ferreiro, faca mal-forjada.

Por que isso importa? Bom, porque um único dicionário – com um nome tão grande que chega a ser cômico – conectou as três variantes da expressão, indicando que elas são equivalentes. O dicionário é o "Diccionario De La Lengua Castellana, En Que Se Explica El Verdadero Sentido De Las Voces, Su Naturaleza Y Calidad, Con Las Phrases O Modos De Hablar, Los Proverbios O Refranes, Y Otras Cosas Convenientes Al Uso De La Lengua" (Madrid, 1729):

Cabeçalho da capa do dicionário castelhano de 1729.
Trecho do dicionário que lista as três variantes da expressão.
As três variantes da expressão, conectadas como se por magia em um dicionário do século XVIII.
Também vale notar a versão em latim, domo in fabrili, culter est hic ligneus. Acredito, contudo, que é apenas uma tradução, e não uma versão concebida em latim.

E por que isso é significativo?

Porque pesquisando por essas três expressões equivalentes individualmente, podemos achar resultados ainda mais antigos. Por exemplo, em "Tesoro de la Lengua Castellana, O Española" (Madrid, 1611). Ou, ainda, em "Refranes, O Proverbios En Romance" (Salamanca, 1555) de Hernan Nuñez – a ocorrência exata mais antiga que eu encontrei, em todas as línguas:

Cabeçalho da capa do 'Tesoro da Lengua Castellana', de 1611.
Trecho do 'Tesoro da Lengua Castellana' que lista as expressões 'pior
apeiro' e 'faca mal-forjada'.
Duas variantes, "pior apeiro" e "mal-forjada", listadas no "Tesoro", de 1611 (p. 251b).
Cabeçalho da capa do 'Refranes', de 1555.
Trecho do 'Refranes' que lista a variante 'faca mal-forjada'. Trecho de 'Refranes' que lista a variante 'pior apeiro'.
Duas variantes, "mal-forjada" e "pior apeiro", listadas no "Refranes", de 1555 (pp. 48a e 48b).

Acima, temos tanto "em casa de ferreiro, pior apeiro" quanto "em casa de ferreiro, faca mal-forjada", em um livro publicado quase 500 anos atrás (465 anos, na data de escrita desse artigo).

O Brasil tinha sido descoberto há pouco mais de 50 anos: uma ou duas gerações, somente. E é uma expressão que, apesar de um pouco modificada, existe ainda hoje! Incrível!

Mas a felicidade não para por aí: encontrei uma frase que é significantemente parecida com o ditado, e que eu gostaria de acreditar que talvez tenha sido, senão a origem, pelo menos uma catalisadora da popularidade do provérbio.

A frase vem de um dos muitos livros de Francisco de Osuna, "Norte de los estados" (Sevilha, 1531).

Importante notar que, apesar do livro ser citado por outros como tendo sido publicado originalmente em 1531, só encontrei versões digitalizadas de 1550 e 1541 (respectivamente abaixo).

Capa do 'Norte de los estados' (edição de 1550).
Capa da edição de 1550 de "Noꝛte de los eſtados"

A frase em questão é a seguinte:

[...] en casa del herrero falta las mas vezes cuchillo : y los porteros que tiene las llaves del castillo : entran menos vezes a los palacios que estan dentro [...]

Francisco de Osuna (1531)

Na casa do ferreiro a faca muitas vezes está faltando; e os porteiros que têm as chaves do castelo; entram menos vezes nos palácios que estão dentro

Trecho do 'Norte de los estados' (1550) com a frase descrita acima. Trecho do 'Norte de los estados' (1541) com a frase descrita acima.
Cima: "Norte de los estados", (1550);
Baixo: "Norte de los estados", (1541).

Criei também uma página dedicada ao contexto completo da frase, para que ela possa ser mais detalhadamente estudada por aqueles que sabem mais do que eu – ou que, pelo menos, falam espanhol.

Comentários adicionais sobre a significância dessa frase se encontram na § Minha teoria.


Chinês

Durante minha pesquisa, encontrei a tese de mestrado de Mao Yaqi na Universidade do Minho, "Contributos para o estudo contrastivo de provérbios e idiomatismos em português e chinês: as obras metalinguísticas de Joaquim Afonso Gonçalves" (Braga, 2018).

Na tese, é traçado um paralelo de provérbios entre chinês e português. Um dos ditados discutidos é "em casa de ferreiro, espeto de pau" e seu equivalente em chinês, 卖扇的手扇凉¹ – traduzido por Mao como:

  • Os vendedores de leques só se podem refrescar com as mãos, e os vendedores de esteiras só se podem deitar em camas feitas de tijolos.

Agora, eu entendo que a expressão chinesa tem pouca relação – ou relevância – no contexto desse post. Porém, não me custava nada adicionar ela aqui, já que a tese já me entregou tudo de bandeja.

O contexto dado para a expressão é bem interessante:

Apesar de venderem aqueles produtos, os pobres não usavam essas coisas caras no seu cotidiano, em casa, servindo-lhes somente como fonte de rendimento.

Mao Yaqi (2018)

Assim como citado por Mao, encontrei esse paralelo no livro de Joaquim Affonso Gonçalves (Macau, 1829), que lista expressões em português e suas equivalências em chinês:

Scan de trecho do livro de Joaquim Affonso Gonçalves, de 1829.
Em casa de ferreiro, espeto de pao / 卖扇的手扇凉Arte china constante de alphabeto e grammatica comprehendendo modelos das differentes composiçoens (Macau, 1829).

Outras expressões chinesas com sentido equivalente apresentadas por Mao são:

  • Vendedores de sal comem sopa insossa;
  • Pedreiros moram em casas de palha;
  • A mulher que vende óleo condicionador de cabelo penteia-se só com água.

Esta última, ainda segundo Mao, pode ser encontrada em "O Sonho da Câmara Vermelha", um livro chinês escrito em meados do século XVIII, na disastia Qing.

¹Possivelmente com caracteres incorretos, pois não falo chinês e tive que copiar visualmente


Inglês

Como se esse artigo não fosse grande o suficiente, resolvi adicionar também o paralelo com o inglês. No idioma, contudo, o ditado costuma vir em formas diferentes, normalmente relacionadas a sapateiros e seus próximos:

  • The shoemaker's children go barefoot (lit. "os filhos do sapateiro andam descalços");
  • The cobbler's children are the worst shod (lit. "os filhos do sapateiro têm os piores calçados").

Porém, encontrei em um dicionário português-inglês de 1773 as seguintes versões:

  • A bad knife in a cutler's house (lit. "uma faca ruim na casa do cuteleiro");
  • Nobody goes worse shod than the shoemaker's wife (lit. "ninguém é calçado pior que a esposa do sapateiro").
Cabeçalho da capa do 'Dictionary of the Portuguese and English', de 1773.
Trecho do 'Dictionary of the Portuguese and English' que lista a variante
'pior apeiro', além de suas equivalências em inglês.
Em caſa de ferreiro peyor apeiroA Dictionary of the Portuguese and English Languages, in Two Parts, Portuguese and English : and English and Portuguese. (Londres, 1773).

Deixando de lado as analogias com sapateiros por um momento, achei interessante que houve também a influência das facas malfeitas, assim como em espanhol. Fica claro que as culturas, por mais diferentes que sejam, se influenciam constantemente, e é uma via de mão dupla.

Se você, caro leitor, cursou ciências sociais, provavelmente já teve essa revelação na sua primeira aula do curso. Mas, como deve imaginar, eu não cursei ciências sociais.

Para efeito de completude, vou também listar aqui um dicionário espanhol-inglês de 1726 que encontrei que também menciona o provérbio (curiosamente, não sob "ferreiro" ou "apeiro" como os outros, mas sob "casa"):

Cabeçalho da capa do 'A New Dictionary, Spanish and English', de 1726.
Trecho do 'A New Dictionary, Spanish and English' que lista, em espanhol,
as variantes 'pior apeiro' e 'faca mal-forjada', além de suas equivalências em
inglês.
En cáſa del herréro peór apéro e En caſa del herréro cuchillo mangorréroA New Dictionary, Spanish and English, and English and Spanish, Much more Copious than any other hitherto Extant. (Londres, 1726).

Resultados

Dito tudo isso, a ocorrência mais antiga do ditado "casa de ferreiro, espeto de pau" que eu encontrei em cada país foi:

Brasil

Portugal

Espanha


Minha teoria

Não tenho como afirmar que a frase de 1531 é a origem do provérbio, e muito menos que o provérbio não existia em 1531, ou que essa frase foi precursora dele. Porém, na minha opinião, a semelhança é suficientemente significante para não ser deixada de lado.

Adicionado a esse fato, o artigo da Wikipedia sobre Francisco Osuna diz, sem citações, o seguinte: Osuna foi o mais lido autor espiritual na Espanha entre 1527 e 1559. Presumindo a validade dessa afirmação, não seria supreendente para mim se, por seu uso nesse livro, Osuna tivesse de fato solidificado a analogia envolvendo ferreiros e facas na mente popular.

Ainda conjecturando, de acordo com as datas encontradas por mim nessa pesquisa, é possível traçar grosseiramente uma possível linha do tempo do alcance e avanço do provérbio após sua concepção:

  1. Concebido na Espanha, por volta do séc. XV – mas possivelmente antes – e popularizado devido à menção no livro de Osuna;
  2. Em seguida, foi de alguma forma levado à Portugal, em meados do séc. XVI; esse transporte é trivial ao se considerar que tanto Salamanca quanto Sevilha são cidades relativamente próximas da fronteira da Espanha com Portugal—portanto, sem dúvida, as duas culturas se influenciaram;
  3. A partir do momento em que chega em Portugal, ser levada ao Brasil colônia no final do séc. XVII, talvez, é igualmente trivial.

Posso estar totalmente errado! Isso é tudo pura especulação. Adoraria se alguém fizesse um estudo mais prolongado e exaustivo para confirmar ou refutar minha conjectura. Fica aí a ideia pro seu doutorado ;) Coloca meu nome nos agradecimentos.


Conclusão

Bom. Três dias inteiros de pesquisa depois, e ainda não tenho uma resposta precisa. O que, pra ser honesto, era de se esperar. Linguística e História não são ciências exatas. Mas, que fica com gostinho de quero mais, fica.

Ainda que uma resposta perfeita não tenha sido encontrada, aprendemos bastante pelo caminho. Por exemplo, como pesquisar a mesma coisa de 500 formas diferentes no Google, ou como burlar as falhas do OCR substituindo caracteres por outros parecidos – "cafa de serreiro" ao resgate. Ou, ainda, que "Pão de Açúcar" já foi escrito "Paõ de Assuquar". Bizarro.

Se você leu tudo até aqui, parabéns! Esse projeto se tornou muito maior do que o eu de 3 dias atrás, com uma dúvida simples e boba, poderia imaginar. E você, que pouco tem a ver com a minha dúvida, precisou de bastante motivação pra aguentar tudo isso. Fico agradecido.

Havendo atualizações e novas descobertas, vou editar esse mesmo post para ter certeza de que as informações mais atuais estão sempre disponíveis.

E caso você, querido leitor, tenha alguma sugestão, reclamação, dúvida, correção, ou algo desse tipo, não hesite em me enviar um email (o@amendo.im).


Saiba pois o Mundo, e a posteridade

Por fim, assim como o editor do Correio Braziliense de 1808, gostaria de mandar meus cumprimentos à posteridade. Como recebi a mensagem de 212 anos atrás, dedico esse recado a 212 anos no futuro, em 2232.

Como será sua vida, habitante do futuro? Será que já fomos extintos? Será que houve outras pandemias como a que ocorre atualmente? Gatos e cachorros ainda são animais de estimação? Ainda estamos confinados à Terra, ou colonizamos outros planetas? Quando, e como será que eu morri?

A essas dúvidas simples e bobas eu nunca terei a resposta. Estranho, né?


Edições do documento

Edição de 10/02/2024: estrangeirismo semântico de "assumir" → "presumir".